APRESENTAÇÃO


Na abertura do 3º SILIC - Simpósio de Literatura Brasileira Contemporânea, enunciamos o presente como acontecimento, em um dos sentidos dados por Jacques Derrida: o impossível que é a própria condição do possível e que, de modo singular, muda o curso da história. E falávamos também de um tempo de ventura. Tínhamos várias razões para um pensamento não meramente otimista, mas concentrado na organização do presente e também do porvir. Institucionalmente falando, é o próprio acontecimento o que vimos na Universidade Federal de Rondônia nos últimos meses, em que, depois de um longo processo de desesperança, temos uma nova reitoria que nos parece mais comprometida em realizar um trabalho de reelaboração da nossa Universidade como um espaço íntegro de constituição de saberes.

Para os membros do Grupo de Pesquisa em Poética Brasileira Contemporânea, organizadores do SILIC, é também um tempo feliz. Alguns de seus membros iniciaram a aventura do seu doutoramento, o que certamente solidificará as nossas pesquisas e discussões. E enquanto organizamos estes Anais, recobertos de alegria pelo número expressivo de trabalhos, outras atividades se põem em movimento.

Como parte do tempo do acontecimento, o 3º SILIC esteve carregado de significados. Primeiro, porque tínhamos um encontro marcado com ele há dois anos, quando concorremos ao Edital de Ciências Humanas do CNPq, e ganhamos, com o projeto O regional como questão na literatura brasileira contemporânea. A partir daí, desenvolvemos uma série de atividades. Houve distensões, interrogações e também enfado. Quase todos nós, pesquisadores, vínhamos de uma formação que nos levava a privilegiar aquilo que convencionamos chamar “estudo imanente do texto”.  Desde a constituição do projeto, sentíamos o emparedamento dos estudos literários que não pára de aumentar há pelo menos 20 anos, quando a onda culturalista varreu o mundo, assim como a onda estruturalista já havia varrido o mundo nos anos 1960.

Da nossa parte, pareceu-nos um olhar mais inteligente abrigar as imposições de um projeto que nos fazia pensar no contexto, no nosso contexto, convertendo-as a nosso favor a partir do questionamento, ao mesmo tempo aprendendo a fazer as leituras como nos havíamos proposto: analisando atentamente as estereotipias que reproduziam as cristalizações do conceito de regionalismo literário. Em linhas gerais, o projeto problematiza, na literatura, o conceito de regional. Ou regionalismo literário. A ideia é fazer com que o conceito e outros correlatos sejam de fato um objeto de análise, e não de confinamento a estudos que priorizem tão-somente aquilo que é próprio de um lugar. Assim, no projeto, a partir do estudo da obra de escritores contemporâneos, a intenção tem sido avaliar a noção de “próprio”. Nos estudos literários, é o próprio de uma região que deve ser priorizado? Ou é a noção de próprio que deve, antes, ser problematizada?

Tínhamos como hipótese, desde o princípio, de que um dos problemas na origem do conceito de literatura regional reside no fato de, geralmente, este se contrapor à ideia de universalidade. Desse modo, não se trata apenas de estudar a obra de autores, mas, sim, de questionar as razões por que o conceito de regional é geralmente visto como problemático quando se refere a obras literárias. O propósito não é se enclausurar em uma via de mão única, o que contribuiria para alicerçar oposições binárias que, muitas vezes, se mostram inconsistentes: regional/universal; nacional/estrangeiro; identidade/alteridade. Isto é, não temos a intenção de desqualificar, sejam as obras, seja o conceito em si. Por outro lado, uma das preocupações consiste em não tratar os textos de ficção que servem de sustentação para o projeto como exemplares de determinada tese, ou seja, como modelos de regionalismo literário, e sim como espaços de linguagem que podem questionar tais modelos. Não se trata, pois, da defesa – nem da condenação – de uma literatura brasileira própria; antes de qualquer coisa, consiste no estudo da produção literária contemporânea, tendo, de certo modo, essa problemática como horizonte.

Ao invés de apenas negar o conceito de forma apressada, decidimos por colocá-lo à prova. Dito de outro modo, enfrentamos a questão como “questão”, o que explica o tema do simpósio: o regional como questão na contemporaneidade: olhares transversais. A questão é uma posição filosófica. Uma posição levada às últimas consequências pela filosofia contemporânea. Embora sejam célebres os textos em que Heidegger e Derrida escreveram sobre o assunto, sem dúvida foi Maurice Blanchot quem escreveu um dos mais belos textos acerca do tema, intitulado A questão mais profunda. Num texto em que cada linha é a negação do fechamento da resposta, ele pergunta: “De onde vem esta preocupação com o questionar, e a grande dignidade atribuída à questão? Questionar é buscar, e buscar é buscar radicalmente. Ir ao fundo, sondar, trabalhar o fundo e, finalmente, arrancar. Esse arrancar de raiz é o trabalho da questão”. 

Na pintura do artista plástico rondoniense Flávio Dutka, que nos cedeu a imagem para o 3º SILIC, observamos o trabalho da questão. Quando aparentemente evoca imagens que comumente são relacionadas à Rondônia, ele nos mostra que toda representação é já um trabalho de releitura ou um trabalho de escrita, como as que se espalham na sua pintura.  No quadro, o verde da mata, as águas do rio, os trilhos do trem, se confundem numa só visada, num processo de aparição e desaparição. A imagem do progresso no que poderia ser a figuração de uma usina hidrelétrica, no entanto, é também a miragem dessa usina que desmorona. Seria a mesma que desaloja os ribeirinhos nas margens do Madeira, entretanto celebrada pelos moradores distanciados das suas margens como símbolo de progresso e riqueza? Narciso afogado ante a própria beleza. De todo modo, diante do quadro, ainda podemos nos pôr a questão: onde mesmo o rio, o trilho, o trem, a mata?, e essa cegueira inicial não quer, de fato, ser clarificada, aplainada, e refere-se à incompletude, à inexatidão, da palavra artística.  

A programação do 3º SILIC, de algum modo, quis deixar também esses sulcos abertos. E encontramos o modo de fazê-lo a partir de dois grandes eixos complementares que compuseram esta edição: no primeiro, discussões pertinentes à análise crítica da produção literária contemporânea, sobretudo aquela geralmente denominada “regionalista”. E, no segundo, numa tentativa de aproximar-se e compreender os movimentos culturais situados fora dos eixos hegemônicos de cultura, como é o nosso, discussões acerca das estratégias culturais referentes à produção de realizadores culturais de Rondônia. De fato, proposições para a literatura estiveram por toda parte, testando as questões que então queríamos delinear.

Termos conseguido o apoio do CNPq, e também da CAPES, na realização desta edição do SILIC, contribuiu para a solidificação do simpósio. A presença de professores pesquisadores como Patrice Bougon, ligado a Universidade Paris 3, Maria Zilda Ferreira Cury, da UFMG, Maria Adélia Menegazzo, da UFMS, Daniel Abrão, da UEMS, Rogério Haesbaert da Costa, da UFF; dos professores da UNIR de Porto Velho, Cynthia de Cássia Barra, José Eduardo Martins de Barros Melo, Marcia Machado de Lima, Rubens Vaz Cavalcante e também do nosso campus, Celso Gayoso e Osvaldo Duarte; a professora da UNEOURO, Enísia Soares de Souza; além de realizadores culturais como Cledemar Jeferson Batista e Simone Norberto, leva-nos a crer que o diálogo estabelecido reportou-nos a um novo momento de nossa pesquisa, mais amadurecida pela contribuição valiosa de suas ideias.

Vale lembrar, mais uma vez, de Derrida, que espera da Universidade, e também de nós, um princípio de resistência incondicional na constituição de um lugar em que nada esteja livre de questionamento, mesmo quando isso deixem expostas a vulnerabilidade, a impotência e a fragilidade da Universidade, e nossa, diante dos princípios de poder que a comandam. Acreditamos ter dado conta de, junto com nossos convidados e participantes, ser esse lugar de questionamento.

Organizadores do 3º SILIC